sexta-feira, 22 de abril de 2011

Manuela Marques | Temporada


Manuela Marques
Temporada
Abril, 11 - Maio, 07, 2011

Ausência e permanência.

A exposição Temporada, que Manuela Marques apresenta na Appleton Square, é constituída por dois corpus do seu trabalho. O primeiro toma como ponto de partida a utilização do vídeo para criar uma abordagem performativa e inter-relacional no espaço. O segundo corpus, fotografia impressa, revela um tecido de ligações estreitas entre a pintura e o cinema.
Este breve enunciado não pretende estabelecer uma hierarquia no trabalho da artista. Em primeiro lugar, porque os meios que utiliza – a fotografia e o vídeo – se destinam a procurar relações diversas com o espectador, e em segundo, porque leva até ao limite uma possibilidade remota de objectivar o real. Ou seja, um contínuo questionar das condições da representação. Tomando o cinema como uma das referências essenciais ao seu processo de trabalho, a artista constrói cada uma das imagens desta exposição a partir de situações e ocorrências aparentemente banais. É nos enquadramentos que nos confrontamos com uma sensação de desconforto, muito próxima de uma ambiguidade que desterritorializa qualquer pista ou indício de uma narrativa possível. O que é representado encontra-se numa fronteira híbrida que se aproxima da abstracção e convoca o espectador a partilhar a impossibilidade de descrever ou documentar o acontecimento que a imagem sugere. Em todas as fotografias desta exposição existe uma luminosidade melancólica, como uma poética da ausência que nos afasta infinitamente da acção ou da personagem, mas que simultaneamente nos retém perante esta. Este afastamento (impossível) a que somos sujeitos está intimamente ligado a uma suspensão temporal determinada pela inexistente informação narrativa, pela falta de contexto, pela incompletude que trata o real como um campo de possibilidades da representação mas ao qual só é possível corresponder pela construção ficcional.
Contudo, esta questão do território – numa primeira instância do lugar e do momento – inscreve em si mesma uma inacessibilidade primordial, ontológica, presente em determinada figura ou elemento paisagístico. Como se a natureza destas imagens estivesse prestes a desagregar-se na impossibilidade que sentimos em estabelecer um diálogo entre o que é representado e a sua significação. As fotografias evocam a pintura como referente da composição, convocando o retrato como género estilístico em que a figura principal da imagem se destaca pela sua posição central no plano ou pela incidência da luz que conduz o olhar para o punctum da imagem. Um desses exemplos é o homem nu sentado na cama de olhos fechados. Outra figura humana é fotografada em duas posições semelhantes, sentada de costas sobre um relvado luminoso. Um ramo de árvore resiste à superfície da água de um rio ou junto à costa marítima. No interior de um bosque ergue-se uma figura isolada. A sua silhueta é indeterminada. Quase andrógina. 
De facto, em todas as imagens existe um olhar concentrado sobre um objecto, e o retrato como referente da pintura transforma-se imediatamente em algo transitório e mais próximo do cinema, revelando uma tensão entre a imagem e o espectador. Entre o que está dentro do campo da imagem e tudo o que resta, mas que, sendo inacessível, se encontra no limiar da imaginação do observador e da sua capacidade para resistir ao inominável ou irrepresentável. Aqui o espectador é o seu contra-campo, o outro da cena em que se inscreve a intimidade e o desejo. Como se fôssemos sujeitos a uma mediação em que somos parte do acontecimento e acolhemos interactivamente um certo grau de absurdidade e alienação presente nas imagens que nos integram.
Com uma estrutura de pensamento semelhante, em que o estatuto da imagem e a temporalidade são questionados, a instalação vídeo intitulada Grândola activa a memória e o reconhecimento, recontextualizando em tempo real a relação com o espaço e com a obra. Encontramo-nos de novo perante a ausência de uma narrativa: apenas nos é dada a possibilidade de religar sinais que nos permitam reencontrar um acontecimento político, a Revolução de Abril de 1974, e um dos seus símbolos mais significativos, a canção Grândola Vila Morena, da autoria de José Afonso. Na instalação vídeo, montada num espaço branco, com o mínimo de interferências visuais, regressamos de novo à utilização do retrato: um homem com o tronco desnudado assobia a melodia da canção de Abril. A presença e a circulação do espectador no espaço metaforizam aqui a ausência, dado que sem estas a obra de Manuela Marques é apenas determinada pela indicação do espaço de exposição. É como se não existisse e estivesse em suspensão. Desta forma, a ideia de interactividade está estreitamente ligada à permanência e ao trabalho do corpo. Esta relação é semelhante àquela que experienciamos perante as imagens fotográficas, construindo, através da nossa presença e do tempo que estamos dispostos a dispensar-lhes, as relações possíveis com os indícios que a artista desvela de um modo muito subtil.
O título Temporada é, para além de uma metáfora de um período de tempo que nos ocupa e nos predispõe para algo, uma advertência à nossa capacidade e disponibilidade para construir uma possibilidade da experiência.

João Silvério
Abril 2011


*Artista vencedora da sétima edição do prémio BES Photo.

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