João Louro
If we want things to stay as they
are, things will have to change
Maio, 27 - Junho, 18, 2011
O Príncipe de Salina ensinou ao seu sobrinho Tancredi um moto para a vida: tudo tem que mudar para tudo ficar na mesma. O personagem de Il Gattopardo, o filme de Luchino Visconti a partir de Lampedusa, é o último de uma era e representa o fim de um ciclo da história, mas um fim que não é o da sua morte, mas o da sua sobrevivência.
A enorme ópera cinematográfica que o filme desenha possui uma qualidade verdiana, simultaneamente auspiciosa e marxisticamente enlevada pelos ventos da História e varrida pelo pó – fisicamente presente em todo o filme – sinal da morte como um fantasma autofágico e omnipresente.
A história que o filme conta, localizada em torno da unificação de Itália por Garibaldi no início da década de sessenta do século XIX, centra-se num personagem que decide compreender que a mudança é uma ruga da superfície da ordem das coisas, mas sabe que essa ordem do mundo é politica e, portanto, frágil. Pouco importa agora se o seu fascínio é o da meta-aristocracia, da hipotética ordem da qual participa também o marxista Conde Visconti – também ele um aristocrata no fio da navalha da mudança.
A sua humana e telúrica sabedoria pertence ao universo da radical imanência da morte, da grandiloquência da fragilidade do volátil.
Creio que é essa consciência trágica que fascina João Louro neste filme.
A exposição é construída a partir de um dialogo entre o aristocrata siciliano e o seu criado, o primeiro disposto a mudar para sobreviver e o segundo pronto a desaparecer na voragem do tempo para se manter. De facto, o dialogo que é reproduzido à volta da sala, ligado electricamente ao chão é o espelho de um conflito que nunca se expressa senão dentro da ordem da dialéctica do senhor e do escravo: o primeiro pode negar-se para que a morte da sua condição surja como inútil – e possa, portanto, sobreviver – e o segundo que tem que se manter, tenazmente, inflexivelmente, na sua condição porque é a sua única condição. Um pode renascer das cinzas da sua morte, enquanto que o outro só pode ser aquilo que é: alguém grato ao poder que o criou, desconfiado portanto do poder que o trai por mais que possa ambicionar participar dele.
A questão politica do filme é, assim, dúbia, ora fascinada com a vitalidade da revolução, ora mergulhada na melancolia aristocrática; ora tomada pela opulência da aristocracia ostentando o seu ocaso, ora olhando com desprezo para a miséria do gosto da burguesia nascente. A grande virtude politica do filme reside na irresolúvel contradição entre o fim e o “Rissorgimento”, entre o gosto sufocante do salão e a banda, o discurso, a sanfona e a trompeta, o pó e o voto. Tudo precisava de mudar, naquele tempo, para a sanfona continuar a lamentar-se e os tambores continuarem a rufar, a polka continuar a ser rodopiada e os salões se puderem suceder agora com a bandeira tricolor.
Creio que é essa irónica consciência trágica que fascina João Louro neste filme. Um dos momento fundamentais do filme acontece no baile, numa situação de sedução lisonjeira para o personagem principal, mas impossível de testar.
A sedução surge como um jogo que só pode ser jogado quando o seu desfecho é previsível e o erótico (tão bem assinalado pelo olhar de Cláudia Cardinalle) é uma quadrilha dançada com imensos requintes protocolares, no meio dos quais o mais pequeno desvio é uma espécie de condensador esperado.
O erotismo reside na sua inevitável impossibilidade pela proximidade do fim (do pequeno ou do grande, do que se inscreve no final de uma dança, numa despedida e no outro, derradeiro, na pequena morte ou na que prefere a maiúscula).
Creio que é essa erótica consciência trágica que fascina João Louro neste filme.
Na última sequencia do filme o seu protagonista, regressando a casa na noite de Palermo, cruza-se com um padre e o seu acólito que vão ministrar a extrema unção a um qualquer miserável. Ajoelha-se na rua à passagem do cortejo e levanta-se para inflectir por uma viela soturna e pouco iluminada. Não saberemos se mergulha na noite mais profunda, metáfora da sua morte inevitável; ou talvez aquela seja a viela onde morava a sua amante. A metáfora do mergulho na negritude da noite abre para esse fosso irónico entre o prazer e o abandono, entre a relatividade do apagamento e o apagamento de toda a relatividade.
Creio que é essa indecisa farsa trágica que fascina João Louro neste filme. Sei que é o que fascina na forma como imagino que estes fantasmas literalmente o assaltam.
Melhor: o que me interessa é a forma como responde ao seu assalto.
Delfim Sardo
Maio 2011
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